“A inauguração da TV Ceará, a 26 de novembro de 1960, foi um marco nas comunicações no Ceará. A nova mídia trazia uma aura de ficção científica e nos empurrava para a modernidade. As imagens em movimento chegavam às nossas casas com uma aparente gratuidade. Quem não tinha dinheiro para comprar um televisor ia para a casa do vizinho. O rádio definhava, mas ganhou vigor, nos anos 1980, com a segmentação. O Cine São Luís, inaugurado em 1958, ‘estalava de novo’. O impacto maior veio com a profissionalização da publicidade, aposentando corretores de anúncios, trazendo agências e novos padrões de consumo. Ganhávamos uma emissora, com programação local: novelas, teleteatro, humor, mistério, musicais, comerciais, tudo ao vivo. Foi um aprendizado difícil e prazeroso. Em 1966, chegou o videoteipe, e a produção televisiva foi centralizada no Sudeste. A TV Ceará fez história.”
Em seus livros “A Televisão no Ceará 1959-1966” e “O Gerente Endoidou”, o professor e pesquisador Gilmar de Carvalho* discorre sobre o que acontecia na mídia na década de 1960:
“Tudo começou a ficar mais profissional com o advento da TV Ceará, em 1960”, ele escreve, citando nomes importantes da publicidade da época: Seu Dudu, Tarcísio Tavares, Zé Domingos, Carlos Paiva, Barroso Damasceno, Xyco Teóphilo, Nazareno Albuquerque. Carvalho ainda nos apresenta um pouco do que era a sociedade e a mídia no Ceará e no Brasil na época.
Seu olhar histórico e analítico para a imagem da televisão e da publicidade cearenses nos faz pensar na importância da fotografia desse período. Ao lado de uma promessa de evolução e modernidade tecnológica, vivíamos a esperança de liberdade ao lado de novos projetos para o ensino, a cultura e as artes. A evolução da imagem fotográfica, da televisão, da fotografia de publicidade, projetava esse horizonte de possibilidades de representação e imaginação de um Brasil moderno, espelhado no modelo americano.
A fotografia analógica, aquela feita em película e câmeras mecânicas, havia alcançado uma tecnologia bastante satisfatória para cumprir seu papel no registro deste universo entre os anos 1950 e 1960. Tanto no cotidiano das famílias como nos estúdios de publicidade e fotojornalismo, a fotografia ampliava sua presença nos eventos e seu espaço em páginas impressas.
A qualidade de impressão gráfica também evoluía, para reproduzir com qualidade as reportagens e os anúncios publicados em jornais e revistas semanais.
Em 1934, em Fortaleza, a ABA FILM foi criada por Ademar B. Albuquerque para funcionar como estúdio fotográfico. Administrada pelos filhos Antonio e Francisco (o fotógrafo Chico Albuquerque**), acabou se tornando uma potência comercial. Em 1936, a ABA FILM emprestou uma filmadora Super-8mm para Benjamim Abrahão Botto (1890-1938), que se tornou o responsável pelo único registro cinematográfico do cangaço. Anos depois, em 1942, o empréstimo de equipamentos foi para a equipe do filme “It’s All True”, de Orson Welles (1915-1985), parcialmente rodado em Fortaleza. Chico Albuquerque (1917-2000) produziu as imagens “still” do processo de filmagem do documentário.
Não havia muitos fotógrafos profissionais locais para o projeto que envolvia a odisseia promovida pelos quatro jangadeiros: Manoel Olímpio Meira (Jacaré), Raimundo Correia Lima (Tatá), Manuel Pereira da Silva (Mané Preto) e Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo), que a bordo de uma jangada vão até o Rio de Janeiro chamar a atenção do presidente Getúlio Vargas sobre a condição social dos 35 mil pescadores que viviam Ceará.
Por outro lado, na fotografia de rua, de família e no jornalismo já existiam então os equipamentos leves, as películas flexíveis em rolos de 35mm e com diferentes sensibilidades para a luz do dia ou luz artificial. Também filmes coloridos e em preto e branco, positivos e negativos. Intermináveis seções domésticas reunião amigos e parentes para mostrar as fotografias de viagens feitas em cromos 35mm, mais conhecidos como slides, projetados numa tela improvisada na sala até que a plateia caísse no sono. Os mesmos formatos de slides eram usados em salas de aula nos colégios e universidades. Um sucesso absoluto no início que resultava em um tempinho extra para dormir no fundo da sala.
Nas áreas especializadas de estúdio, arquitetura, ou para imagens técnicas e científicas, os equipamentos eram mais pesados. Demandavam maior precisão, lentes especiais e os altos preços os tornavam acessíveis apenas aos profissionais de empresas, laboratórios e agências de publicidade que podiam importar o material dos Estados Unidos ou da Alemanha.
O paraibano Leocácio Ferreira da Silva (1921-1983), um militar da Marinha que havia ganhado a primeira câmera do pai aos cinco anos e que apenas começava uma diletante carreira de fotógrafo amador, ainda não estava incluído nessas categorias, por assim dizer, “mais abastadas” da fotografia profissional. Não até a década de 1950.
Ele observava a arquitetura moderna, as fábricas de eletrodomésticos, os novos magazines e lojas, os supermercados que substituíam o mercantil de bairro, e os veículos com design arrojado montados ou fabricados no Brasil.
Como lembra Gilmar de Carvalho: “Os carros DKW-Vemag tomavam conta da cidade. Os jornais publicavam a perspectiva do Supermercado Fortaleza e, em setembro, o Supermercado Sino seria construído. A Universidade do Ceará levantava sua concha acústica. Quem visitava a cidade era o cineasta francês Marcel Camus. Maria Ester Bueno venceu o torneio de tênis de Wimbledon”.
O tempo voava, o mundo expandia, parecia se alargar. E a fotografia procurava acompanhar toda essa amplitude de acontecimentos. Para trabalhar de acordo com as exigências do seu tempo, Leocácio Ferreira começou a investigar a criação de uma máquina fotográfica com maior abrangência visual. Ele percebeu que precisava incluir o “todo” em tudo, e começou a estudar como construir uma câmera fotográfica panorâmica, na qual a objetiva girava sobre a superfície curva onde é colocado o filme 120mm, cobrindo, assim, 170° da cena.
Como define o termo, a câmera panorâmica representava claramente a necessidade de colocar tudo e todos juntos numa única imagem. Pan significa “total”. Orama, vista.
Batizada de Jane-pan em homenagem à sua filha Jane, a nova câmera panorâmica projetada e construída por Leocácio teve uma elaboração sofisticada e precisa. Já na época, compará-la em qualidade, acabamento e precisão a qualquer uma de suas contemporâneas européias ou americanas não continha nenhum exagero. E operada por seu inventor, era capaz de capturar belezas acachapantes.
Leocácio Ferreira fotografou a Festa da Cumeeira de 1960, da TV Ceará, que coincidiu com o 25º aniversário da Ceará Rádio Clube. Também são dele e de sua Jane-pan as imagens do espetáculo inaugural de TV de Romance , assim como os roteiros de novelas assinados, os filmes que João Ramos dirigia; as fotografias e as filmagens eram feitas por Leocácio Ferreira.
Uma nova estética da imagem nascia a partir dos estúdios de televisão e de fotografia publicitária, modelos impostos que chegavam para globalizar o comportamento e a linguagem. As agências de publicidade empreenderam uma revolução para atender às novas mídias. Publicações especializadas como a “TV Revista” eram distribuídas gratuitamente e traziam entrevistas, notícias, reportagens, além da programação da TV Ceará.
Em 1964 Leocácio Ferreira foi substituído por Polion Lemos na TV Ceará, o que impulsionou sua carreira particular. Com sua Jane-pan, ele teve acesso à alta sociedade, à indústria e comércio, às grande obras do governo e às empresas que colaboravam com a transformação do Estado do Ceará. A dupla homem-máquina, criador-criatura, registrou a primeira missa campal e a construção de Brasília. Fotografou a história do futebol cearense, como a inauguração do Castelão, em 1973. Mais as primeiras turmas de formandos nas Universidade Federal do Ceará, as primeiras vencedoras dos concursos de beleza Miss Ceará e Miss Brasil, as reuniões sociais nos clubes, os grandes açudes cavados pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, o DNOCS, a recepção ao Papa João Paulo II em sua passagem pela capital do Estado, em 1980, e partidas da seleção brasileira de futebol.
Frequentando a frenética sociedade de então, fotografava as festas no Náutico, os shows de Carlos José, Jararaca e Ratinho, Cauby Peixoto, Carlos Galhardo e Moreira da Silva, Eliana Pittman, Dilu Melo e sua harpa paraguaia, Carmen Porto, Jackson do Pandeiro, Núbia Lafayette, Orlando Silva, Luiz Gonzaga, Manezinho Araújo, Os Velhinhos Transviados, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira, Sônia Delfino, Alcides Gerardi, Pixinguinha, Moreira da Silva, Elizeth Cardoso, Isaurinha Garcia, Jorge Veiga, Jamelão e Ataulfo Alves, Edith Veiga, Salomé Paraíso, Nora Nei, a nata da música brasileira da época, enfim.
Grande parte dos brilhantes negativos panorâmicos produzidos por Leocácio Ferreira foram mantidos em seu acervo particular, com informações organizadas e catalogadas por sua esposa. Um rico material que se perpetuou graças à ajuda dos filhos Jane e Leocácio.
Esta exposição tira os panoramas de Leocácio Ferreira da gaveta e mostra a grandiosidade e a amplitude do trabalho que ele produziu num Ceará que caminhava em ritmo de “Brasil Grande”, ao passo do “Milagre Brasileiro” e ao som da ufanista “Pra Frente Brasil”, hino da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1970: “Todos juntos, vamos…”
Hoje, o Museu da Imagem e do Som reabre as suas portas em outro contexto, urgente e vital: recuperando a força criativa de Leocácio Ferreira, sua capacidade inventiva, para enaltecer a importância de estarmos todos juntos na reconstrução da memória e na preservação da cultura de nosso povo, na busca de um desenvolvimento sociocultural mais justo. Vamos?
(*) Gilmar de Carvalho graduou-se em Direito em 1971 e em Comunicação Social em 1972 pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Trabalhou em agências de publicidade (Scala e Mark). É Mestre em comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (1991) e Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo (1998). Vencedor do Prêmio Silvio Romero, do Prêmio Érico Vanucci Mendes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Prêmio Rodrigo Melo Franco, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), com a pesquisa “Rabecas de Tradição”. Sua área de interesse é a das relações entre comunicação e cultura. Atualmente, fomenta e pesquisa atividades de ateliês xilográficos da região do Cariri, como a Lira Nordestina, em Juazeiro do Norte, e acompanha a produção e edição de livros de cordel, álbuns de gravuras e matrizes.
(**) Em 19xx, Chico Albuquerque parte de Fortaleza rumo ao Rio de Janeiro, onde encontrará Sthephan Rosenbauer e Erwin von Dessauer, fotógrafos alemães influentes nos estúdios da cidade. Em 1947, se transfere para São Paulo, onde participará ativamente no Cine Clube Bandeirante, ao lado de nomes importantes da fotografia paulistana, como Thomaz Farkas, German Lorca e Geraldo de Barros. Em seu bem equipado estúdio na avenida Rebouças, desenvolve uma das mais significativas carreiras no campo da imagem publicitária no Brasil. Montou o departamento de fotografia da Editora Abril na virada dos anos 1960/1970. Deixou um riquíssimo arquivo de fotografias de São Paulo e do Ceará, além de retratos de grandes personalidades das artes brasileiras. Seu estúdio cresceu junto com a cidade, a ponto de e transformar em rede com filiais em Fortaleza, Sobral e Juazeiro do Norte. Ficou com a família Albuquerque por três gerações, até encerrar as atividades na primeira década dos anos 2000.